quarta-feira, 3 de outubro de 2007

As vesperas (II)

- Se a pudermos ter de vez em quando já não é mau - disse o busto da cavalo - que eu há anos que anseio por mais umas linhas que me dessem pernas para cavalgar...
- Olha lá, muito obrigado!, disse o narigudo, se ficasses com pernas eu aqui ao teu lado morria concerteza!
- Oh, não...eu ia ter pena, ia chorar e ficar triste muitos dias - disse a menina já com os olhos brilhantes!
- É, é...e eu tenho de ficar sempre assim? - respondeu o busto de cavalo sentido e desesperado - também tenho o direito de me querer completar, ou não?
- Tu sempre foste assim, porque que é que queres mudar agora? Já reparaste que quando mudares vais matar o teu velhinho? - perguntou o lagarto.
- Onde a nossa liberdade acaba começa a dos outros, ou será ao contrário? - interveio o candeeiro de papel amarelado pelo tempo e pela luz.

O cavalo sentindo-se ameaçado nas suas esperanças e liberdade e para se acabar por ali a discussão do seu assunto particular disse: Mas eu não mando no tecto, eu só gostaria e se isso acontecesse era felicidade, mas não culpa minha!
- Mas desejar-me isso ou esperar que isso aconteça magoa-me...vá só um bocadinho porque percebo-te...eu também gostaria de ser mais novo e menos narigudo!
- Ah, então se calhar até era bom e eu também iria crescer e usar saias justas e penteados grandes - disse a menina feliz por ter descoberto um sonho que ia dar pano para mangas para quando quisesse sonhar - e tu, lagarto, se calhar deixavas de ter essa nuvem que te tapa o sol!

- Sim - disse a nuvem que até agora só ouvia desatenta enquanto se entretinha a arredondar mais os seus traços - eu se calhar ia mudar de figura e tornar-me numa montanha...gostava tanto...já passei por tantas fases e deve ser optimo estar ali sentada a falar com muitas nuvens viajadas (não como eu que me canso muito depressa porque estou gordissima de nunca chover) e elegantes, ficar ao sol sem o tapar e ouvir as conversas das pessoas que se passeiam em nós...
O lagarto, sempre o mesmo com aquele ar de saber tudo e de tomar a última palavra para concluir disse: mudem-se todos e depois quero ver se nos damos bem...

- Mudarmos não nos faz esquecer o que fomos, ou faz?, nem nos tira da memória os nossos amigos, nem por isso nos corta o coração-acho eu!- disse o cavalo ansioso por mudar agora que a ideia parecia conquistar quase todos.
(continua)

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