segunda-feira, 1 de outubro de 2007

As vesperas (I)

Subia as escadas calmamente sem as ver, olhando só o sol que realçava a madeira usada de tantas passagens. Parecia que a minha alma ia a sobrevoar o meu corpo por simpatia, pois ela estava tão cheia de medo e hibernava para se defender, fazendo os meus sentidos acompanharem-me sem atenção. Eu estava, como se diz, fora de mim.

A causa residia num problema que se pode considerar banal, mas que a este ponto me amolecia até eu não gostar. E, por considera-lo um problema banal, não vou explica-lo ao pormenor, correndo o risco de torna-lo mesmo insignificante. Mas de qualquer forma não teria ânimo para expô-lo em profundidade, questionando-me sobre os meus sentimentos e explorando as minhas condicionalidades sentimentais e reactivas.

Trata-se pura e simplesmente de um mal de amor, não por falta de correspondência, mas que arrastou atrás de si desavenças familiares através de mal-ententidos e da nossa ingenuidade de ouvir tudo o que dizem, para o caso de até terem algum ponto de razão e verdade. Acontece que quem muito fala por vezes diz o que não quer e distorce a verdade e que quem muito ouve, neste caso eu e ele, ouve muitas vezes coisas que não quer e acima de tudo deturpações e fica mesmo sem querer ligar à crueldade e confusão com um certo abalo inconveniente.

E assim, ao subir aquelas escadas que conduziam ao meu quarto, eu tive vontade de sonhar sem altos voos uma realidade melhor. Abri a porta pesada do meu quarto e depois de abrir as cortinas e as janelas para deixar entrar o sol da varanda deitei-me no meio do meu tapete de arraiolos e revi no tecto todos os fantasmas e seres que se desenhavam nas sombras e que eram já meus amigos intimos, de tantos momentos terem partilhado a minha vida e com quem eu procurava consolo e um ouvido.

Contei-lhes como era bom ser nova e tê-los comigo. Cumprimentei-os um a um redefenindo cada linha das suas imagens...havia o busto de cavalo, um senhor narigudo, mas simpático, uma nuvem (cada pessoa tem pelo menos uma no seu intimo), havia uma menina pequenina e sorridente com muitos caracóis e um lagarto. Estes eram os mais importantes...e cada um entrelaçava-se aos outros e deixavam suspeitar entre eles muitos outros que se descobriam consoante o nosso estado de espirito e vontade de ver.

Assim, comecei pela menina dos caracóis e perguntei-lhe se tinha tido um bom dia...

-Ah, o meu dia, sabes, foi tão bom....estive a brincar às lojinhas, o que me realizou e preencheu e estive a falar com um menino que me explicou que não há muita gente como nós que preenche o dia a fazer o que gosta e que se dá tão completamente às coisas! Ele já o tinha conseguido fazer a brincar aos carros, a passear de bicicleta, a estudar, a acompanhar a mã e achava que ia descobrir ainda muitas maneiras de o fazer.

Eu sorri, um pouco constrangida, e pensei alto: as crianças acreditam no que sonham, mas mais tarde percebem que inevitavelmente há muitos dias inúteis...e que não se pode fazer o que se quer.

-DISCORDO! - disse o lagarto tão veemente que me assustou! - Eu acho que isso de não se fazer o que se quer é só para quem o quer..., claro que há que dar tempo ao tempo, mas isso já é estar a fazer algo pelo que se quer fazer! Por exemplo, eu gosto de apanhar sol, mas quando chove vou-me preparando e logo que o sol chegar tenho o meu sitio previsto, a minha pele preparada e a mente disposta a isso.

- Pois isso é tudo muito bonito, mas o que se quer fazer ou não não é problema de um dia...é de uma vida. Pois eu fiz o que queria todos os dias e agora acho que não fiz nada de especial - disse cabisbaixo o narigudo! - Mas pelo menos aprendi isto...vamos sempre a tempo de arranjar tempo e calma para pensar realmente no que queremos fazer.

-Eu também penso muito quando estou a dormitar ao sol - retorquiu o lagarto - e acho que o que eu mais quero não é nada de complicado, só que chovendo dois dias seguidos preferia desligar-me e só me tornar a acender ao sol, poupando assim a minha vida só para o que gosto...

Entusiasmada com a viva discussão que captava a atenção dos presentes, interferi com as minhas certezas: o que dá gosto ao que gostamos é esperar por elas, prepararmo-nos para elas e para lhes dar o devido valor é preciso não as ter de vez em quando!
(continua)

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